quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Vida natural e orgânica, existência artificial e mecânica

Many Happy Returns of the Day, William Powell Frith (1819 – 1909), 1856. Mercer Art Gallery, Harrogate Museums and Arts.
Many Happy Returns of the Day, William Powell Frith (1819 – 1909), 1856.
Mercer Art Gallery, Harrogate Museums and Arts.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Uma sala que se percebe ter proporções inteligentemente calculadas: bastante alta e bastante larga para dar a um tempo as impressões harmonicamente contrárias de aconchego e desafogo.

Nela cabem folgadamente os móveis, os quadros, o lustre, as pessoas, com espaços largamente suficientes para que estas se movam despreocupadamente, sem a todo momento esbarrar em alguma coisa ou em alguém.

Os móveis não são de luxo. Sólidos, decentes, cômodos, aprazíveis ao olhar, prestam-se eles também folgadamente ao uso humano.

Boa mesa espaçosa junto à qual pode sentar-se uma família numerosa, e sobre a qual podem acumular-se sem transtorno as iguarias sadias e modestas servidas num almoço de aniversário, de uma família situada entre a pequena e a média burguesia.

Cadeiras bem torneadas, de linhas amenas, suficientemente fortes para durar indefinidamente.

Grande tapete – sem luxo, e de fabricação comercial, vê-se – que dá certo calor à sala.

As roupas estão em exata coerência com o ambiente. De bom tecido, confortáveis, e com um talhe ao qual não falta certa distinção burguesa. A criada, de apresentação mais modesta embora, traja-se com decência e conforto.

Pela janela, protegida por stores e cortina, entra uma luz amena, largamente suficiente para a sala toda, mas graduada de maneira a não ferir os olhos, e a conservar uma claridade calma e temperada no ambiente.

* * *

Calma, temperança, amenidade, eis bem as notas dominantes do quadro. Os trajes sumamente recatados dão um aspecto de pureza a esta vida de família, que explica por sua ver a amenidade de seu convívio.

Many Happy Returns of the Day, William Powell Frith (1819 – 1909). Mercer Art Gallery, Harrogate Museums and Arts, detalhe.
Many Happy Returns of the Day, William Powell Frith (1819 – 1909).
Mercer Art Gallery, Harrogate Museums and Arts, detalhe.
Numa família em que tenha entrado o verme roedor da impureza, as almas não têm saúde nem frescor para se deleitar em afetos castos como os do lar.

Todos se sentem felizes e distendidos nesse ambiente em que cada qual se sabe estimado, apoiado e considerado segundo merece.

* * *

Falamos muito intencionalmente em consideração. Note-se a situação do velho casal. O que a família tem de mais afetivo volta-se para ele. As duas filhas ladeiam a mãe cheias de respeitoso afeto.

A menina sente-se feliz e honrada em apresentar uma bebida ao avô, sob o olhar atento e simpático do homem de idade madura.

Para a alegria das crianças há também um lugar, nesta reunião. Os dois meninos conversam risonhos, uma outra criança está sendo carinhosamente servida por sua mãe.

Mais além, outra ainda, de índole tranquila, goza em paz o seu sossego. E enquanto isto a pequena aniversariante, feliz e grave como uma rainha sob seu arco de flores, acaba de saborear uma iguaria, e seu olhar vagueia pela sala, a um tempo despreocupado e atento.

Mas se é larga a parte das crianças, não são elas que dominam a sala…

* * *

Ambiente confortável, sadio, plácido, casto, que mereceria até ser comparado ao dos “Buissonnets” de Lisieux, se na sala se notasse alguma imagem, e uma nota sobrenatural que transcendesse, iluminasse e desse mais elevação a este interior doméstico tão rico em valores tradicionais de autentica civilização cristã.

Em suma, ambiente favorável à saúde da alma e do corpo, que dispõe admiravelmente os espíritos para a virtude sólida, seria, equilibrada e estável.

* * *

Praça de alimentação em qualquer parte do mundo.
Praça de alimentação em qualquer parte do mundo.
Anonimato, burburinho, aperto, pressa, preocupação. Enquanto uns comem rapidamente uma comida feita em série, outros esperam sua vez. Ninguém sorri. Uma ou outra pessoa diz alguma coisa, mas não há conversa.

Todos pensam no trabalho que fizeram ou no trabalho que irão fazer. Muitos homens estão de chapéu, como se estivessem numa estação ou num ônibus. Note-se entretanto como se vestem os personagens: são todos de uma camada equivalente à média ou pequeno burguesia.

Precisamente o nível da família do quadro acima. É’ o interior de um restaurante-relâmpago numa grande cidade moderna. E assim almoçam em quase todos os dias do ano milhões de pessoas, e muitas além de almoçar também jantam.

E poderia ser de outro modo? As grandes aglomerações, a consequente concentração dos negócios, a celeridade do ritmo de vida que daí decorre, acentuada ainda pela vertiginosa facilidade que o radio, o telégrafo e o telefone trazem à rápida circulação do dinheiro, tudo enfim concorre para dar ao homem moderno condições de vida muito trepidantes.

* * *

Sim. Mas a que preço para sua saúde, seus nervos, seu equilíbrio, sua virtude, sua vida de família? Não há nisto uma expressão da mecanização perigosa da vida, contra a qual o Santo Padre (Pio XII) alertou o mundo?


(Autor: Plinio Corrêa de Oliveira, “Catolicismo” Nº 58 – Outubro de 1955).

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